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Iniciando nos mistérios do Xibalbá

Letras & Concepções do álbum Legados do Inframundo (2014)
Autora: Susane Hécate (vocalista & tecladista)

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PRÓLOGO

 

Iniciando nos mistérios do Xibalbá

 

A temática deste álbum foi inspirada na cosmologia mítica dos antigos Mayas, sobre a morte e o inframundo (Xibalbá), presente no livro sagrado do Popol Vuh e nas profecias de Chilam Balam de Chumayel. Nesta cosmologia o universo é formado por 3 grandes estratos: céu, terra e inframundo. O céu era concebido como uma pirâmide de 13 níveis; a terra, como uma prancha quadrangular, e o inframundo como uma pirâmide invertida de nove níveis. A vida e a morte, a criação e a destruição, coexistiam e se complementavam em uma necessária oposição dinâmica. Estes ciclos se desenvolviam neste espaço cósmico estratificado, mantido pelos galhos, troncos e raízes de uma ceiva gigantesca, a árvore sagrada (Yaxcha) cujos galhos se elevam aos céus e as raízes penetram no inframundo. O tronco desta árvore representa o mundo onde habitam os seres humanos. O Yaxcha, localizado no centro do universo, conectava os diferentes níveis cósmicos, era o lugar do ato primordial da criação. O inframundo também chamado de Xibalbá, Mitnal ou Submundo era uma região cósmica obscura, um lugar físico subterrâneo cujo acesso se dava por meio de rios, fontes de água, cenotes, covas rochosas e cavernas. Este lugar era habitado e comandado pelos deuses da morte. Era o lugar para onde caminhavam as almas dos mortos em busca de renascimento. Os Mayas acreditavam na vida após a morte, como parte fundamental de um ciclo perene de criação, destruição e renovação. A alma dos mortos devia percorrer o Xibalbá para depois se juntar com os ancestrais, assegurando assim a renovação do universo. O inframundo era assim concebido como o reino da morte, das trevas e escuridão (Akbal), apesar do Sol atravessá-lo todos os dias durante a noite. Este reino da desolação e do sofrimento era também fonte de vida e de renascimento eterno. Pelos tenebrosos caminhos do Xibalbá, seres malignos estão à espreita, empenhados em atormentar e destruir os humanos, mas ali residem também as forças geradoras que fazem brotar os vegetais e que dão solo firme às árvores da selva. O Xibalbá não representa o sofrimento eterno, como acontece no inferno cristão, mas sim uma etapa na existência humana que teria de ser superada, para se alcançar um nível mais elevado. Essa viagem ao Xibalbá nos ensina que devemos ter força e coragem para submergir em profundidade, em algum momento da vida, no lado mais obscuro, destrutivo, depressivo, angustioso e doloroso da existência humana, para viver em vida a experiência da morte, porque só no “inframundo da alma”, entenderemos o que somos. Esta experiência te convertera em um renascido, em um iniciado nos mistérios do Xibalbá. 

 

 

1. DEUSES FÚNEBRES

A saga ao Xibalbá, ao estado primordial. Império do medo, dos deuses da morte, de seres disformes, de fetos e larvas. Santuário sagrado. Forças do Popol Vuh. Submundo nos ciclos do tempo. Inframundo da alma. Mitnal, Akbal, Hun Camé, Vucub Camé, Kisin, Ah Puch, Xiquiripat, Cuchumaquic, Chamiabac, Chamiaholom, Ahalmez, Ahatocob, Ixtab, Hunahpú, Ixbalanqué, Tok’yah... Enfermidade e caos. Dor, vida e morte. Escuridão e autos de decapitação. Legados do inframundo. Xibalbá.

2. SAGA AO XIBALBÁ

 

As almas dos mortos iniciam sua viagem ao Xibalbá na travessia de um rio, a bordo de um barco conduzido por Kinich Ahau, o  jaguar do Inframundo. A água simbolizava a criação do universo, era indispensável nos ritos de passagem, por isso os mortos deviam atravessar as águas para reviver em novo estado. Kinich Ahau era o sol do inframundo, durante a noite, o condutor de almas, o hierofante que inicia os mortos nos segredos do brumoso Xibalbá. 

 

No livro sagrado dos mortos está escrito esta saga ao Xibalbá. Cortejos fúnebres aclamam sua última viagem ao reino da escuridão. Kinich Ahau te espera para a travessia, guiando o trajeto dos mortos. “A lua e o vento. A noite e o dia. Tudo caminha, tudo passa. Todo sangue chega ao lugar de seu repouso. Assim como todo poder chega ao seu trono” (Profecias de Chilam Balam de Chumayel). O reino da morte tem o seu triunfo. Destinos selados, presos no tempo. Caminho sagrado que marca seu destino ao santuário sagrado da morte. Kinich Ahau me acompanhe nesta saga. Contemplando a outra margem do rio, sua morada inframundo. A saga ao Xibalbá, ao estado primordial. Império do medo, dos deuses da morte. Tudo caminha, tudo passa ao santuário sagrado da morte. Kinich Ahau!

 

 

3. ENTRONIZADOS NA MORTE

 

O inframundo Maya era um reflexo do mundo dos vivos. Mais do que sofrer a morte, no inframundo se vive outra forma de existência. Trata-se de um mundo paralelo que os reis e sacerdotes podiam atravessar em transe estático. Não era um lugar de sossego e prazer, mas sim de sangue, sacrifício e tortura. Seus habitantes são seres disformes, agressivos e de gestos repulsivos.

 

No inferno agora caminham abandonados, vendo o terror, marcados pela dor. Com honra e fúria me ergo na descida ao Xibalbá. Tudo passa em ciclos infernais: a vida e a morte, a profunda dor da morte de um punhal cravado no peito. Tudo passa. Criaturas disformes, rostos de pavor, seres doentios em profunda encantação. Ossos que se movem em profunda danação. Para além do rio de sangue, nos caminhos de Akbal. Olhares insanos perdidos na escuridão. Segredos primordiais cravados nas rochas do templo. Santuário da morte. Forças telúricas e primordiais. Ixchel em transe celebra sacrifícios de sangue no templo da morte, em frenética dança ritual. Regentes do inframundo. Submundo nos ciclos da morte. Minha voz, seu grito no tempo, transporta sua dor. Vejo o Sol percorrendo as entranhas da terra. Expressões de augúrios diante o Jaguar. Renascemos a cada Lua como heróis ancestrais, Reis do Sol, entronizados na morte.

 

 

4. SACERDOTE-JAGUAR

 

Para percorrer o Xibalbá, os mortos necessitam da ajuda do sacerdote-jaguar (Chilan) que detém a chave do renascimento. Ele é o verdadeiro protetor do mundo dos mortos e por isso mesmo do mundo dos vivos. Em transe desperta a consciência dos mortos para o seu estado incorpóreo e os atrai para o interior do Xibalbá, guiando-os na escuridão. O templo é o local de concentração dos poderes do sacerdote que orientam a geração e o funcionamento do cosmos.

 

Guardiões do inframundo correndo de volta ao templo, guardando segredos primordiais. Resistência ancestral! Em ritos fúnebres no templo da morte. Sacerdote-jaguar celebrando deuses da morte. Libertando a alma do templo. Libertando seu grande espírito. Lealdade na escuridão. Evocando mortos em transe, guiando seus passos para além do inframundo de volta ao Mitnal, ao ventre da Deusa, de fetos e larvas, de mortos esperando renascer no inframundo. Metamorfoses espirituais da morte. Sublimes estágios de renascimento. Akbal guia o jaguar. Akbal corre em minhas veias. Unindo mundo opostos, potências celestes, a alma dos mortos aos ancestrais. Chave do renascimento no mundo dos mortos. Forças ctônicas, ritos telúricos.

 

 

5. TOK’ YAH

 

Os sacrifícios humanos obedeciam as intensões cosmológicas e oraculares que mantinham o funcionamento do cosmo. Sua origem aparece no mito da criação dos seres humanos que narra como os deuses originais concordaram em criar o mundo. Para isso a missão dos humanos era venerar e alimentar os deuses. Do mesmo modo que os humanos comem vegetais, um alimento material, os deuses também, como seres sobrenaturais, deviam se alimentar de um alimento sobrenatural: a energia cósmica que se encontrava no sangue e corações dos sacrificados. A palavra “tok’yah”, significa “sangre”, era gritada em coro nos rituais de sacrifícios humanos. O suicídio era uma forma honrada de morrer. Era necessária a purificação, o sacrifício de nossas paixões, para chegar a obter os frutos da árvore cósmica. Ixtab, a deusa da forca e do suicídio, cuida e guia as almas daqueles que se auto-sacrificam. Ela desce do Yaxcha, da árvore onde ela está enforcada, e pega estas almas, guiando-as até esta árvore onde descansarão eternamente.

Na escuridão do inframundo ilumino a última pirâmide, guardando mistérios pela eternidade. Não há fim nas distâncias que devo percorrer, por toda parte irei procurar nossa honra, legado. Tok’yah! Guerreiros da morte, regendo sacrifícios de sangue. Tok’yah! Milícias em fúria marcham em busca de sangue. Na escuridão do inframundo ilumino a última pirâmide, guardando mistérios pela eternidade. Punhais manchados de sangue nas mãos de guerreiros austrais. Corações ainda pulsam. Nossa honra, legado. Sofro com profecias de um mundo decadente que com honra e fúria chegou ao seu fim. Guiado por Ixtab ao Yaxcha. Forças do inframundo, do auto-sacrifício. Guiado por Ixtab ao Yaxcha. Sofro! Mas as sementes da antiga sabedoria brotam do inframundo, das profundezas da angústia humana, do inframundo da alma. Tok’yah! Xibalbá agora reina em toda parte. Xibalbá agora é parte de mim. Tok’yah! Meu coração está firme, fiel ao pacto de sangue. Auto-sacrifício, a libertação. Seu mundo nos braços de Ixtab. Nos ramos da árvore sagrada, nas seivas da morte. Xibalbá agora reina em toda parte. Xibalbá agora é parte de mim.

 


6. 13 AHAU KATÚN

Os Mayas concebiam o tempo de forma cíclica, onde cada era representava um Katún. O tempo não era retilíneo com um destino prometido à catástrofe final. O grande sacerdote Chilam Balam previa os acontecimentos para cada uma dessas eras. O 13 Katún correspondia ao tempo em que os cristão chegaram à América, impondo novas dogmas e convicções sobre o céu e o inferno. Era o fim de uma era antiga que trouxe a destruição dos antigos ritos e a escravidão. Os invasores cristãos perseguiram os Chilan (sacerdotes), condenando-os como adoradores de satã. Os textos sagrados anunciam a agonia e a morte do chilan, o fechamento dos templos, o fim dos sacrifícios de sangue e o abandono dos mortos com o fim dos ritos que os guiam pelo caminho do renascimento no Xibalbá.

 

“Logo o céu cairá, cairá sobre a terra, onde os quatro deuses, os Bacabs habitam, os que protegem da destruição” (Profecias de Chilam Balam de Chumayel).

 

Profecias do último Katún. Hieróglifos sagrados do templo. Prenúncios do fim, reinados da morte. Ameaça de seres Bacabs que sustentam o firmamento. Triunfos de Akabich Ahau, a face da noite. Deuses do Sol, antigos impérios em batalhas rituais. De além-mar vieram os Dzules, usurpar as glórias do templo. Quebrar-se-á a face do Sol, rompendo ciclos de renascimento. Reinando forças estéreis em todo o inframundo. Sacrifícios de mortos letárgicos que aguardavam o renascimento. Para a glória de Akbal, aflição no mundo SUBLUNAR. Lua e sol cairão, céu e terra desaparecerão. Manchando de sangue a alma do templo. Benção celeste eliminada. O Chilam suplica aos deuses. Seu templo coberto de sangue, sinais de infortúnio, de injúria e escravidão. Mortos que aguardam no limbo choram e não retornarão. O Chilam no alto do templo contempla a morte. O décimo terceiro katún, a prisão de seus deuses. Renascem os nove níveis do inframundo, afastando poderes celestes. Semeaduras ouvirão a morte do Chilam. Será o grande sono. Será o grande sono, mas a alma do templo voltará. A alma do templo voltará.

 

7. SENHORES DO MITNAL

Os deuses Mayas regiam o tempo. Eram seres que viviam, se alimentavam, dominavam e matavam. Nasciam, impunham seus poderes e morriam em um movimento cíclico constante para voltar a nascer em outro momento. Kisin ou Ah Puch é o deus da morte, um membro da coorte infernal, uma caveira com silhueta humana e manchas de decomposição. Sua imagem é sinal de desgraça, catástrofe, contaminação e odor. Os deuses do Xibalbá são os que decidem sobre o fim da vida humana, com o dom de provocar as enfermidades que levam à morte. Estes deuses eram: Hun Camé, “Uma morte” e Vucub Camé “Sete morte”, juízes supremos do panteão da morte. Havia outros que atuavam em pares: Xiquiripat e Cuchumaquic, que provocavam os derramamentos de sangue; Ahalpuh e Ahalganá provocavam inchaços nos corpos humanos, fazendo brotar pus das pernas; Chamiabac e Chamiaholom enfraqueciam os corpos; Ahalmez e Ahaltocob provocavam mortes por acidentes no caminho de casa, e Xic e Patán causavam morte repentina por meio de fortes dores no peito, fazendo vomitar sangue.

           

Mitnal, túmulo sagrado dos deuses da morte. Mitnal, visões cadavéricas, pulsões da morte. Senhores do Xibalbá, clamando ritos de dor, regendo destinos no inframundo. Senhores do Xibalbá, jogando com a morte, soberanos infames no inframundo. Mitnal. Kisin, enfermidade e caos. Ah Puch decapitando o Deus Sol. Hun Camé, Vucub Camé, juízes supremos da morte. Xiquiripat, Cuchumaquic, reúnem o sangue. Chamiabac, Chamiaholom, enfraquecem seus corpos. Ahalmez, Ahatocob, a morte em seu caminho. Regem os ciclos do tempo. Nascem, dominam e morrem, nos ciclos do tempo de infinitos renascimentos. Autos de decapitação, auto-sacrifício, imolação, aos Senhores do último Katún, triunfos do Mitnal. MITNAL!

 

8. LEGADOS DO INFRAMUNDO

Muitas eram as provas e desafios pelos quais os mortos deviam passar para chegar ao nível mais profundo do Xibalbá. Esta jornada começava pelo cruzamento de vários rios cheios de sangue, escorpiões e pus. Depois o caminho se dividia em quatro estradas para o entretenimento dos Senhoras da Morte, confundido os viajantes. Os mortos escolhiam os caminhos e chegavam a uma das seis casas mortais: a primeira delas era a Qequma Haa (Casa das Trevas), uma sala inteiramente obscura por dentro; a segunda era Xuxulim Haa (Casa do Calafrio), extremamente fria por dentro e insuportável, podia congelar a alma pela eternidade; na terceira, Balami Haa (Casa do Jaguar), só há jaguares dentro, eles estão todos entrelaçados e apertados uns contra os outros, agressivos e furiosos se agitam pela casa; Zotzi Haa (Casa do Morcego) era a quarta provação, há apenas morcegos cativos que lançam gritos extremos e esvoaçam pela casa; já a quinta casa, Chayim Há (Casa das Navalhas), só tem facas dentro, apenas fileiras de lâminas de facas que retinam por toda parte e se chocam umas contra as outras. Os gêmeos míticos (Hunahpú e Ixbalanqué) antes de se converterem em corpos luminosos (Sol e Lua) percorreram o Xibalbá, enfrentam suas provações e desafiam os Deuses da Morte.

 

Na odisséia mítica da morte, minhas forças emanam da dor. Espíritos wayob guiam minha jornada. Vejo Hunahpú e Ixbalanqué, gloriosa jornada. Do inframundo ao zênite, odisséia de heróis ancestrais. Corações leais, forjados na dor, habitam o meu mundo Xibalbá! Vejo glifos cravados nas rochas, cenas de embate sangrento, deuses decapitados, corpos sacrificados. A serpente emplumada rastejando na escuridão. Honras a Kukulkán! Qequma Haa, caminho nas trevas. Xuxulim Haa, ventos gélidos de pavor. Balami Haa, o Jaguar caminha ao meu lado. Zotzi Haa, criaturas do sangue. Chayim Haa, navalhas que cortam minha pele. Do início ao fim, ao cosmos primordial. Só há mortos no caminho. Legados do inframundo! Na escuridão, minha honra e fúria se forjaram, minhas visões alçaram horizontes. Diante de tudo que vi: morte, dor e renascimento. Para sempre na escuridão! Eu não quero sair, eu não vou abandonar esta jornada. Vejo a grande árvore cósmica, seivas do distante paraíso terrenal, atravessando as esferas celestes, nutrindo os filhos da morte.

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